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Foto do escritorAtma Deva

O Tempo, a liquidez da modernidade e o Buda

Em toda sociedade, a percepção do tempo é moldada por suas necessidades e valores. No entanto, se olharmos através das lentes da sabedoria budista, perceberemos que essa construção social do tempo é apenas uma convenção. O tempo, ao ser dividido em passado, presente e futuro, esconde sua verdadeira natureza: a vacuidade (sunyata), pois não há um "tempo" que possamos segurar ou controlar. Como Buda ensina no Adittapariyaya Sutta, “Tudo está em chamas, o olho está em chamas, as formas estão em chamas..." – também o tempo que tentamos aprisionar em calendários e agendas está em chamas, ardendo com o fogo do desejo e da ilusão.

O tempo social, como um ritmo imposto pelas sociedades, serve à produção e sobrevivência. Contudo, para além dessa necessidade material, devemos questionar a nossa relação com o tempo sob a luz da impermanência. Como diz o Dhammapada: "Tudo o que é condicionado é impermanente”.

O tempo social nos arrasta como uma correnteza, através dos ciclos de nascimento e morte, criação e dissolução, tal como a roda do samsara gira sem cessar.

As sociedades variam na maneira como experimentam o tempo. Porém, os ensinamentos do Buda nos orientam a ver além das divisões arbitrárias de passado e futuro, dias e meses. O tempo é uma ilusão que nos afasta do presente, que é o único instante onde a vida verdadeiramente acontece. "Não vivas no passado, não sonhes com o futuro, concentra a mente no momento presente" (verso do Dhammapada).

A questão aqui não está em ignorar o que chamamos de passado e futuro, mas sim compreendermos que um está e outro estará refletido no momento presente, que é onde a vida efetivamente acontece. A celebração de datas e estações possui sua importância social, emocional, psicológica e de integração, devendo ocorrer sem causar distração da verdade essencial de que cada momento é único, ao mesmo passo que, de acordo com nossa percepção, ocorre em uma espécie de linearidade cíclica.


Bauman e a modernidade líquida


O sociólogo Zygmunt Bauman introduziu o conceito de tempo pontilhista para descrever a maneira como o tempo é vivido no que ele chama de  modernidade líquida, uma sociedade contemporânea marcada pelo consumo e pela ausência de estruturas sólidas. Nesse contexto, o tempo deixa de ser percebido como linear (com um progresso contínuo) ou cíclico (com padrões repetitivos), como em outras sociedades, e passa a ser fragmentado em momentos isolados, como se fossem pontos desconexos.

Na modernidade líquida, cada momento é vivido como único, sem necessariamente estar vinculado ao passado ou ao futuro. Isso significa que não há continuidade entre os eventos, que são percebidos de forma fragmentada, com rupturas frequentes. Bauman usa a metáfora do pontilhismo para ilustrar essa ideia: assim como uma obra de arte pontilhista é composta por uma série de pontos que, vistos de longe, podem formar uma imagem coesa, o tempo pontilhista é feito de momentos dispersos que, à primeira vista, parecem desconexos, mas que só são organizados retrospectivamente.

Zygmunt Bauman, ao falar sobre o tempo pontilhista, descreve uma modernidade líquida onde o tempo se fragmenta em momentos isolados, perdendo sua linearidade e ciclicidade.

Do ponto de vista budista, essa fragmentação reflete a nossa ignorância fundamental, a crença de que somos seres separados, vivendo em momentos distintos e desconectados, quando na realidade tudo está interligado em uma rede de causas e condições. O tempo pontilhista, então, é apenas mais uma manifestação da impermanência e da vacuidade que permeiam todas as coisas.


Bauman fala sobre a ausência de continuidade e coesão no tempo moderno, mas isso reflete a própria natureza do samsara. Como o Buda ensinou no Sutra do Diamante, todos os fenômenos são como "um sonho, uma ilusão, uma bolha, uma sombra, como o orvalho ou um relâmpago." O tempo, tal como o concebemos, é uma série de fenômenos interdependentes, vazios de substância própria, e sua percepção como pontilhista ou linear é uma construção mental.


Na sociedade de consumo descrita por Bauman, cada momento carrega um potencial de transformação imediata, o que pode ser visto como uma busca constante por satisfação instantânea. No entanto, essa busca incessante pela gratificação imediata gera sofrimento (dukkha). O Dhammapada nos ensina: "Controla teus desejos, assim encontrarás a paz." Cada instante de busca desenfreada por prazer é como um grão de areia escorrendo entre os dedos – sempre fora de alcance. Como Bauman afirma, essa vida pontilhista leva a um "cemitério de oportunidades desperdiçadas", uma descrição que ecoa o ciclo de renascimento e morte no samsara, onde as oportunidades de despertar são desperdiçadas quando nos apegamos ao efêmero.


Na geometria euclidiana, um ponto é uma entidade que não tem dimensão — ou seja, ele não possui largura, altura ou profundidade. É uma unidade isolada, que existe sem qualquer extensão no espaço ou no tempo.

Bauman usa essa ideia para ilustrar como, na modernidade líquida, os momentos vividos pelas pessoas se assemelham a esses pontos geométricos: são eventos isolados, sem conexão entre si, e sem uma continuidade lógica que os una em uma narrativa coesa. Assim como um ponto geométrico está fora do tempo e do espaço por não possuir extensão, cada momento da vida, na visão pontilhista, carrega um potencial infinito, mas ao mesmo tempo é descartado rapidamente, sem necessariamente fazer parte de um fluxo temporal contínuo.

No budismo, a prática de estar completamente presente em cada momento – de verdadeiramente habitar o agora – é o caminho para transcender o sofrimento. "Melhor do que mil palavras inúteis é uma única palavra que dá paz." (Dhammapada). O ponto de partida para a compreensão do tempo, então, é o reconhecimento da sua natureza ilusória e a prática da meditação que nos ensina a estar plenamente no momento presente.

Conclusão:

O tempo pontilhista de Bauman reflete o sofrimento inerente da sociedade do consumo, onde a pressa e o descarte são a regra. No entanto, o Buda nos mostra que há um caminho para escapar desse ciclo de insatisfação constante. Através da prática do Nobre Caminho Óctuplo (aprenda mais sobre o Caminho aqui no site e em outras postagens), podemos cultivar sabedoria, conduta ética e concentração que nos libertam da pressa do consumo e nos conduzem à paz interior.

Na sociedade líquida, somos incitados a buscar mais, a acumular experiências e objetos, mas Buda nos lembra: "Nem mesmo a chuva de moedas de ouro satisfaria os desejos de uma pessoa." O tempo que tanto tentamos controlar e preencher com atividades pode ser nossa maior prisão. A verdadeira libertação vem ao percebermos que o tempo é, na verdade, uma construção mental, e ao abandonarmos nossos desejos e apegos, podemos finalmente encontrar a serenidade.


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