A política reflete a intrincada rede de interações humanas voltadas à organização, manutenção e transformação das estruturas sociais e é um reflexo direto da condição humana, marcada por desejos, medos e aspirações. Ao olharmos para a política pelo prisma dos ensinamentos budistas, compreendemos que ela deve ser transformada em um instrumento de benefício coletivo, guiado pela sabedoria, por uma ética e pela compaixão.
Ao refletirmos sobre o papel da política, assim como fazemos com todos os aspectos do mundo, precisamos lembrar da impermanência. Afinal, a impermanência, de acordo com seu aspecto de efemeridade, agirá; e nenhum sistema político, por mais consolidado ou aparentemente duradouro que pareça, é permanente. Tal qual todos os fenômenos no Samsara, as estruturas políticas estão sujeitas ao surgimento (no plano das idéias e no plano aplicado), à transformação e à extinção. O essencial é que governantes e cidadãos compreendam essa natureza transitória das formas de governo, bem como das ideologias. É esperado – e preciso – analisar e buscar a maneira mais equânime de governo, mas agarrar-se a uma visão rígida como fosse absoluta é uma forma de ignorância (avidya). Ao reconhecer a impermanência, podemos trabalhar com maior assertividade e fluidez nas estruturas sociais, prontos para as correntes adaptações, correções e alinhamentos com as necessidades que surgem, cultivando um espírito de adaptabilidade, prontidão para o diálogo e flexibilidade na direção à equinamidade.
Quando políticos e líderes se tornam conscientes da impermanência, eles evitam o apego ao poder e a fama. A transitoriedade das posições de liderança, por exemplo, ensina que o poder político é uma responsabilidade temporária e não uma conquista a ser defendida a qualquer custo. Lembrar-se de que tudo passa pode ser um ponto de ancoragem para a sabedoria (prajna) e para a prática do não-apego (vairagya), características fundamentais para uma liderança ética.
Liderança, Ética e Compromisso com a Verdade
No Dhammapada encontramos ensinamentos claros sobre a importância da Ação Correta e da Fala Correta, dois elementos do Nobre Caminho Óctuplo, que deveriam ser guias a qualquer liderança política. A liderança deveria estar fundamentada em princípios éticos sólidos. Um líder comprometido com a verdade, a integridade e a retidão tem um impacto positivo em sua comunidade, pois age não movido por interesses egoístas, mas pelo bem comum.
Uma política guiada pela ética reconhece o sofrimento alheio e busca minimizar esse sofrimento, neste momento trazendo para a ação a compaixão (karuna). Políticas públicas, decisões governamentais e a legislação devem ser construídas a partir de uma perspectiva de cuidado com todos os seres. Governar a partir da compaixão é estar em sintonia com o sofrimento dos mais vulneráveis e criar mecanismos de apoio e proteção. Um líder compassivo não busca acumular poder ou riqueza, mas sim garantir que os recursos sejam distribuídos de forma justa e equitativa.
A prática da bondade amorosa (metta) também é indispensável para uma liderança realmente favorável sobre os aspectos que alcançam a sociedade. Um líder que cultiva metta nutre um desejo sincero pelo bem-estar de todos, sem discriminação. Essa qualidade permite que o líder veja além das divisões sociais, políticas e econômicas, reconhecendo a interdependência de todos os seres. Quando a liderança é motivada por metta, a política torna-se um campo de harmonia e cooperação, ao invés de conflito e divisão.
O Poder e o Ego: Armadilhas do Caminho
O poder, quando mal compreendido, alimenta o ego, a falsa noção de um eu sólido e separado. O ego político, muitas vezes inflado pelo poder, leva à corrupção, ao desejo de controle e à repressão. Na visão budista, o ego é uma ilusão que gera sofrimento tanto para quem o cultiva quanto para aqueles ao seu redor e sob sua influência. O desejo por poder e a ambição desenfreada são manifestações da avidez, uma das três causas-raiz do sofrimento, juntamente com a aversão e a ignorância (avidya).
As relações governamentais, quando dominadas pelo ego, geram decisões que são tomadas a partir de uma perspectiva distorcida, em que o bem-estar coletivo é negligenciado em favor de interesses pessoais ou partidários. O ego leva à polarização, à divisão e ao sectarismo. A busca por controle, por sua vez, manifesta-se em políticas opressivas, que silenciam vozes dissonantes e impõem uma visão unilateral da realidade.
O cultivo da sabedoria é a chave para dissolver as ilusões do ego. A sabedoria nos ensina que a verdadeira liderança não é controladora ou possessiva, mas está a serviço da verdade e da compaixão. Um líder sábio compreende que o poder é uma ferramenta a ser usada com responsabilidade, e que cada ação tem consequências (karma). O impacto do poder mal utilizado pode reverberar por gerações e assim gerar ciclos de sofrimento, não apenas reações imediatas. Já o poder orientado pela sabedoria e pela compaixão gera um legado de harmonia e bem-estar.
Engajamento Consciente: Política como Caminho Espiritual
Podemos interpretar o engajamento consciente sob a lente do que chamamos de “meios hábeis”. Isso se refere a habilidade de aplicar o ensinamento do Dharma de maneira eficaz e apropriada às circunstâncias. O engajamento político deve ser feito com discernimento e sabedoria. Um indivíduo que deseja se engajar de maneira consciente na política precisa cultivar a observação da mente, buscando compreender as dinâmicas sutis do poder, as necessidades da sociedade e as causas subjacentes do sofrimento coletivo.
Ao se engajar politicamente, o praticante budista deve constantemente se perguntar: “Estou agindo a partir de um lugar de compaixão e sabedoria ou estou sendo movido pelo medo, pelo desejo de controle ou pelo ódio?”
Esse autoexame é básico para evitar que o engajamento se torne um campo de batalha de egos, em contramão a um espaço de transformação e geração de bem-estar e dignidade física e espitirual à comunidade e sociedade.
Um indivíduo consciente sabe que sua participação política pode influenciar o futuro de muitos seres. Portanto, o voto, a atuação em movimentos sociais ou a própria candidatura a um cargo político são oportunidades de colocar em prática os ensinamentos do Dharma. O voto consciente não deve ser baseado em impulsos momentâneos ou em discursos inflamados, mas em uma análise cuidadosa dos efeitos que uma política ou um candidato podem ter sobre o sofrimento e o bem-estar das pessoas.
A Política como Caminho Espiritual
Finalmente, é importante entender que a política não é algo separado do caminho espiritual. Para o budista engajado, a política pode ser vista como um campo de prática. Assim como o Bodhisattva, que se compromete a ajudar todos os seres a alcançar a libertação, o político praticante budista pode utilizar seu tempo, seu poder e sua influência para construir uma sociedade mais justa, compassiva e consciente.
O ideal de governança de um Bodhisattva é aquele que visa criar condições favoráveis para o despertar coletivo, minimizando as causas do sofrimento e incentivando a harmonia social. Dessa maneira, a política, quando orientada pelos princípios do Dharma, torna-se um caminho de liberação, tanto para o líder quanto para a sociedade que ele serve.
A política, quando praticada com ética, compaixão e sabedoria, torna-se um veículo de transformação profunda. Ela pode, quando guiada por intenções puras e práticas habilidosas, se tornar um campo fértil para o crescimento espiritual e social. O líder que abraça os princípios budistas, como o não-apego, a compaixão e a sabedoria, transforma sua liderança em um serviço à humanidade e à busca pelo despertar coletivo.
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